Avanço da modalidade depende muito destes “criadores de problemas”
Eles são os heróis anónimos da escalada. Aqueles que trabalham nos bastidores para que os atletas brilhem no exercício de uma modalidade que se poderia traduzir como um xadrez que se joga com pés e mãos. São os equipadores, ou como são universalmente conhecidos, “route setters”.
O route setting é uma arte que poucos dominam e que, pelo seu carácter de quase secretismo (a construção das vias ou boulders numa competição e o seu efeito ‘surpresa’ a isso obrigam) se reveste de algum mistério até para os próprios escaladores.
Ofício complexo de quem tem de montar “problemas” que cumpram vários requisitos: selecionar, formar e entreter. Hugo Peniche, funcionário da FCMP é um dos “route setters” responsáveis pelo trabalho nas últimas temporadas competitivas nacionais, dá uma visão alargada das várias vertentes deste “metier” tão essencial à escalada:
“Muitas vezes pensa-se que o route setter é um técnico especializado que só vê o aspeto competitivo, mas não é bem assim. A competição é a vertente mais nobre, mais antiga e a mais complexa, em que tem de se separar o ‘trigo do joio’ entre os atletas em prova, mas também possibilitar que estes proporcionem espetáculo, que se divirtam e divirtam quem está a assistir.”
Uma visão partilhada por Frederico Silva, selecionador nacional e a outra metade da dupla que tem equipado nos últimos anos as provas da FCMP, dando seguimento a uma linhagem em que se contam nomes como os de José Luís Carvalho, Pedro “Flau” Martinho, José Luís Fernandes, Tó Quim ou Francisco Ataíde.
“O route setter é um ‘designer’ de escalada. Desenha os movimentos de acordo com a dificuldade que pretende, com o objetivo de separar os atletas, criar uma hierarquia classificativa. Que caiam ou encadeiem consoante o seu nível, mas dando segurança e originalidade para que estes possam surpreender o público”, diz Frederico Silva.
Mas se a vertente competitiva é a mais “nobre”, nas palavras de Hugo Peniche, o próprio sublinha que existem outros lados deste ofício que merecem atenção: “Hoje em dia existe o route setting comercial, que depende muito da filosofia de cada ginásio de escalada, e o ensino. O route setting de ensino está umbilicalmente ligado ao treino e que terá de ter uma importância muito grande no futuro da modalidade. Professores que queiram ensinar a fazer escalada têm de ter noções de route setting. O próximo passo é o Desporto Escolar, com os professores que ensinam escalada a equipar e a levar isto para a frente.”
Apesar de terem tido um destino confluente, Hugo Peniche e Frederico Silva têm percursos ligeiramente diferentes. Ambos são escaladores que encontraram no route setting uma forma de estarem profissionalmente envolvidos na escalada, mas com Hugo Peniche foi a formação como professor de Ed. Física que o levou a especializar-se, enquanto Frederico Silva, grande referência competitiva, com vários títulos nacionais a destacarem-se num rico palmarés enquanto atleta, começou a equipar provas de forma “natural”. “Antes de escalar já estava ligado à vertente artística e foi natural para mim criar movimentos de escalada. Primeiro, para ajudar os colegas de treino, e depois comecei a estudar o trabalho de outros route setters e a equipar provas muito cedo, desde 2003, com 20 anos”, conta Frederico.
E como está o “route setting” em Portugal? O panorama é animador, diz Hugo Peniche: “Já existem pessoas a fazer um trabalho muito positivo, em competição e comercialmente. Há alguns ginásios de escalada com equipas a fazer um trabalho muito positivo e estão a aparecer mais pessoas interessadas. Estamos ainda relativamente atrasados face ao que se faz lá fora, mas com mais pessoas envolvidas caminhamos para diminuir esse atraso. “
Frederico Silva subscreve a opinião do seu colega e elogia o trabalho que tem sido feito em prol da escalada nos últimos anos pela FCMP: “Temos tido formações importantes como a que trouxe o conceituado Tonde Katiyo. Mas também dizer que, quando equipava competições há 10 anos, teria 300 euros em equipamento e tinha de usar as mesmas presas nas qualificações e nas finais; agora disponho de 6 ou 7 mil euros em presas.”
O também selecionador nacional sublinha que o facto de acumular o cargo com o de “route setter” da FCMP ajuda muito no seu trabalho:“Ajuda-me porque tenho consciência do que os atletas precisam e a capacidade para o desenhar. Os ‘route setters’ são quem molda o próprio futuro da escalada. Estão constantemente a testar coisas novas e a fazer avançar a vertente técnica da modalidade.”